terça-feira, 1 de julho de 2008

Fragmentos do Real I

É uma sexta-feira de verão, fim de tarde. O trânsito adivinha o fim de semana e a debandada para o litoral. Crianças saem da escola, cães passeiam seus donos, as cervejas já estão nas mesas, o sol vai demorar ainda para se por, o supermercado está cheio. Numa transversal de um bairro qualquer, um homem está agarrado à grade de uma casa, com os olhos esbugalhados, suando muito. E gritando. Gritando como num filme de terror, aquele grito de pavor, de quem se vê diante do monstro, da morte, do fim trágico. Beira os trinta anos, um pouco acima do peso, bem barbeado, cabelo bem cortado. Calças boas, sapatos de couro, camisa azul. E grita. Desesperado. Um pequeno grupo começa a se formar, enquanto ele grita. E apenas duas expressões saem daquela boca de dentes muito brancos, bem cuidados: minha mulher, minha filha, minha mulher, minha filha. Como um mantra. Nos olhares, a pergunta: porque um homem de trinta anos, bem vestido, bem calçado, grita em pânico, agarrado a uma grade, no meio de uma calçada, em plena sexta-feira de verão? Duas moças se aproximam e mostram: na beira da calçada, um copo com água e uma seringa recém-usada. Da janela do apartamento, elas viram quando ele chegou, sentou na sarjeta, tirou um saquinho com um pó branco do bolso, misturou na água e se injetou. Cocaína. Fitando o nada, ele grita, grita, grita: minha mulher, minha filha, minha mulher, minha filha. Chega a policia, chega a Samu. Outra moça consegue fazer com que ele se acalme e solte a grade. Um linguicinha cheira o pé dele. Ele vai de mãos dadas com a moça, sobe na ambulância, que liga a sirene e some. A rua retoma seu movimento normal, as buzinas tentam acelerar o trânsito, o sol finalmente se põe.

Um comentário:

Dinho F disse...

Belo texto miss mezzari, deu pra sentir a angústia do homem...a realidade é mesmo uma droga pesadíssima.
bx